A USP de hoje... em estado de luta

Coseas-Ocupada
15/01/2011, 18:00
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A USP de hoje… em estado de luta

por um professor da USP

O sistema usp de lidar com o humano é "desumano". Há uma rígida marca uspiana que estabelece um prazo de validade para todos os seres humanos que adentram na "glória" que é pertencer a esta maravilha que é a Universidade São Paulo, privilégio só ao alcance da nata do "créme de la créme". Quem passar pela "rigorosíssima e competentíssima" seleção de entrada, tem um tempo de validade correspondente à sua categoria, finda qual os estudantes ou se tornam "ex-alunos" ou são jubilados, os docentes e pesquisadores caem na compulsória e os trabalhadores, como vemos agora, são enxotados. Faz-se tábula rasa e não se atenta às diferenças e especificidades de cada caso e todos caem na vala comum da sucata, sob a forma de bagaço. O argumento, profundamente falso, é de liberar espaço para os novos. Mas o verdadeiro conteúdo desta crueldade é a concepção mercantil que se tem da força de trabalho. A Usp é uma indústria e tem que se reciclar e promover a reciclagem enquanto despeja mercadorias no mercado. As piores resultantes desta concepção mercantil é a valorização do carreirismo, o culto ao vencedor e ao "pós-moderno" com o consequente aviltamento do "perdedor" e do pretensamente "ultrapassado" e o "salve-se quem puder" liberal. Forma-se assim uma força de base com este conteúdo que tem sido o principal apoio para a privatização da universidade e para a multiplicação de iniciativas "privadas" condizentes com este conteúdo: fundações, farsa do tempo integral, esculhambação do serviço público, empresa jr e quejandos. Trata-se de uma força de reação que se lança contra tudo o que é humano, voraz e predadora no sentido de matar os laços de comunidade e os elementos de coletividade que se formam espontaneamente nas áreas de pesquisa e de ensino. Enquanto elemento de ruptura permanente, evita processos com continuidade e é, intrinsecamente, anti-cultural, anti-artística, anti-científica e anti-técnica. Não há chance de se formar inteligência coletiva com esta prática.

No seio dos docentes a compulsória aos 70 é uma barbaridade. No dia seguinte a data fatal o docente encontra suas coisas jogadas fora da sua sala. É uma queda do paraíso para o inferno sem passar pelo purgatório. Nesta ruptura perdem-se as linhas de pesquisas construídas ao longo de décadas para abrir passagem, muitas vezes, para carreiristas ou para vendidos à alguma corporação. Não é à toa que a universidade não produz mais Schembergs, Vanzolinis, Aziz. Em seu lugar, salvo honrosas exceções,  temos uma abundancia de mediocres tecnocratas.

A esta questão central, na qual a civilização brasileira perde ciência e cultura, soma-se o terrível impacto emocional que estas rupturas provocam no nossos queridos mestres setentões. Todos, sem exceção, ficam deprimidos. Os anos de suas vidas que foram entregues para o crescimento da instituição são trocados por um pijama. As consequências, muitas vezes, são fatais. Nada contribuiu mais para a doença mental que consumiu os últimos anos de vida de Mário Schemberg do que o desprezo e alheamento com que os seus sucessores no Instituto de Física trataram os seus projetos e suas realizações naquela unidade. Rocha Barros, discípulo de Schemberg e nosso mestre querido, faleceu de um ataque cardíaco algumas semanas antes de cair na compulsória.

No que se refere aos trabalhadores ocorre um processo semelhante, com uma agravante. As suas contribuições de décadas para a universidade, ainda que extremamente importantes na criação das condições de pesquisa e ensino, não são reconhecidas. Homens e mulheres que amam a universidade, que se dedicaram com carinho e cuidado às suas tarefas, determinando até no resultado superior da pesquisa e do ensino, não são reconhecidos e são vistos, quase sempre, por alunos e docentes, como parte da mobília: quando velhos, devem ser jogados fora e substituídos. A sua sabedoria resultante do acumulo de pequenos conhecimentos aos quais só eles tem acesso, é olimpicamente desprezada pelos deuses acadêmicos.

Os alunos também são atingidos pela síndrome do sucateamento acadêmico. Assim que recebem o diploma entram na categoria "ex". Se, na graduação, conseguiram se pendurar nos testículos de algum diretor de laboratório ou unidade de pesquisa, permanecem uspianos graças à mestragem e à doutoragem. Senão, vão para a selva chamada de "mercado de trabalho" onde é cada um por si e deus (ou seja, ninguém) por todos. Muitos alunos, apesar do ensino industrial e impessoal que tiveram na USP, conseguem constituir pequenas coletividades de amigos. Mas como estas estão centradas nas faculdades, a proibição de suas presenças acaba por dissolver estes laços que deveriam eternos.

Já os jubilados são párias, gente que não deu certo. Não importa que a grande maioria dos alunos que entram num determinado curso não se formem. São fracos e devem mesmo abrir espaços para os vencedores. Não faz mal que na USP não exista educação (formação de seres humanos) e que o ensino seja extremamente fraco, visto como "um mal necessário" pela maioria dos professores. É impossível haver na USP um processo de criação curricular. O currículo deve ser a combinação produzida pelos professores que buscam relacionar os diversos conhecimentos das múltiplas áreas na perspectiva humana; na USP o currículo é a resultante da simples somatória do cursos que são definidos e dados individualmente pelos professores que o fazem a partir do que cada um entende como importante na sua área. Não avisaram ainda aos docentes da USP que a cátedra foi abolida; a prática de professor titular mantem o espirito de propriedade privada: cada professor é dono da sua disciplina e da sua aula. O resto é frescura.

Como exigir dos jovens que estão na difícil transição da juventude para a vida adulta, que não se confundam, não se atrapalhem, não se percam neste momento em que estão dotados de um organismo adulto, pleno de suas funções fisiológicas (e, principalmente, sexuais) mas totalmente ignorantes e afastados da maturidade cultural? Só mesmo sobrevive ao massacre os alunos que têm uma retaguarda familiar muito forte (o que é uma exceção) ou que se tornaram fanáticos do conhecimento específico (os tais "especialistas"), conhecidos como "CDF's" (atualmente, com a invasão ianque, passaram a ser chamados de "nerds"). Os docentes, principalmente aqueles feitos de arame e chips, que substituíram os "velhos" seres humanos que, ainda que raros, existiam na USP, em sua corrida louca rumo à vitória acadêmica não tem tempo nem para ensinar (a não ser "massificar") e muito menos para educar (ou seja, atuar de forma humana com os seus alunos, orientando-os).

É necessário escapar da falsa dicotomia "entrada-saída". Para abrir espaços para os novos não é necessário expulsar o velhos. O novo e o velho são contrários que não necessariamente se antagonizam. A produção do humano é, antes de tudo, uma continuidade que se baseia na combinação do velho com o novo , na sua harmonização e não na sua repulsão, ainda que esta exista. Os índios americanos tinham como premissa que "os velhos devem abrir espaços para a entrada dos novos". Há velhos que se recusam a fazer isto; são estes que devem ser afastados pois os danos que causam à comunidade são irreversíveis. Há velhos que anseiam pelos novos, que sabem que entre si há muito espaço e que todos os novos cabem nele pois todo espaço humano é infinito. Estes precisam permanecer porque são imprescindíveis pois são educadores. Há jovens que querem subir destruindo os velhos para devorar e se apossar individualmente de tudo o que eles produziram. Estes jovens, devem ser afastados pois são psicopatas. A sua juventude não os exime de respeito à comunidade. Há jovens que amam os velhos educadores, que neles se espelham para produzirem-se a si próprios. Estes precisam entrar e permanecer, porque são imprescindíveis. Infelizmente hoje, o que predomina na USP são velhos que odeiam jovens e jovens que odeiam velhos. E ambos os extremos se "relacionam" entre si através da competição entre "quem devora quem": se é Saturno devorando seus filhos, se é as falanges de jovens fazendo uso das "clavas generosas".

Já sabemos, há muito tempo, graças aos alertas dos nossos amigos das Arcadas, que Rodas atropela, que o que o magnífico fala não se escreve. Como "a mentira tem rodas curtas" e elas não funcionam no vácuo, o trator da repressão desviou-se, provisoriamente, dos estudantes que estão respondendo processos de expulsão, para os trabalhadores aposentados, tido por ele como mais vulneráveis. Conseguimos, por enquanto, aparar o golpe que ia ser desfechado contra os guris e as gurias. Agora temos de neutralizar esta nova rodada cujo mote, falso, é "tirar os velhos que estão ocupando as vagas dos novos" e cujo motivo, verdadeiro, é a obscessão rodista de acabar com o "duplo poder" que ele afirma existir na USP. Outras rodadas virão, tão certo quanto a terra girar em torno do sol e as rodas girarem em torno do "poder sobre o humano".

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